Manifesto do jogador descalço

Habemos a nova camisa da seleção brasileira de futebol. Nosso patrocinador que me perdoe mas não nos vimos naquela camisa. O amarelo de sempre estava lá lembrando épocas áureas do futebol mais bonito do mundo. Mas uma coisa fora o amarelo incomodou, jogamos de corpo sim, mas fechado nunca. Somos guerreiros com certeza mas de uma guerra própria que se passa dentro de cada jogador, chamamos esta guerra de superação. Transpor o próprio limite a cada lance, propor o inacreditável a cada jogada. Este sim é o puro futebol brasileiro sem faixa verde.

Brasileiro não veste camisa, o futebol está direto na pele. A cor miscigenada de cada jogador já é uma camisa. Desde pequenos estamos acostumados a jogar descalços num gramado de cor bem diferente, cinza-asfalto ou marrom-chão-batido. Por isso, não há chuteiras que deem mais controle de bola do que um legítimo pé brasileiro. Nada mais preciso no chute de que uma original trivela. Neste caso, nem precisamos dos cinco dedos do pé. Que nos digam os magos que faziam gols de biquinho, abusando da destreza do dedão. Para a beleza do futebol brasileiro sem chuteiras, apenas um dedo já é suficiente.

Aprendemos desde as peladas de rua a proteger a vida e a bola. "Olha o carro!" vem a cabeça de qualquer menino ou menina do Brasil com a bola no pé. Logo, meus amigos, não há zagueiro brucutu que nos faça tremer com a redonda entre os pés. E estes zagueiros têm outra maldição para lidar: nunca jogamos sozinhos. Quase heresia à religião futebolística brasileira jogar bola sozinho. A rechonchudinha não sai debaixo do braço dos meninos até juntar a turma toda, dois no mínimo. Mas onde está a maldição?

O futebol brasileiro é generoso e nunca revelou um gênio por vez. Somos ao menos uma dupla. Pelé e Garrincha, Tostão e Rivelino, Sócrates e Casagrande, Bebeto e Romário, Diego e Robinho, Lucas e Casemiro, Ganso e Neymar entre outras duplas. A maldição é exatamente essa, não existe adversário que possa apresentar uma dupla de zaga genial. Quando os holofotes caem sobre um craque, ainda sobra outro livre pra marcar.

Tanta generosidade e abundância no bate bola confunde desde zagueiros adversários a patrocinadores de material esportivo. Não conseguiriamos fazer um filme magistral e com clima guerreiro. Nosso espetáculo não tem apenas um protagonista. Além disso, sorrimos demais. Exatamente por isso, não nos vimos naquela camisa com símbolo de guerreiro de corpo fechado. A tentativa foi boa, mas existe um outro futebol atrás das camisas e chuteiras tecnológicas. Um futebol que sorri a cada toque consciente na bola, que se concentra na precisão de um simples passe, que caçoa do companheiro que levou um drible desconsertante. E nessa brincadeira formamos jogadores mais atentos, mais ligados, tão ligados que conseguem as tabelas mais rápidas e inteligentes do futebol mundial. Aqui o show não depende de 1. É feito em cima do 1-2.

Umbabarauma. Onze letras, onze corpos e uma alma, a de menino jogador brasileiro.
Somos onze pontas de lança que aprenderam a entrar desacreditados e sair vitoriosos. Assim como aquela bola que vai correndo perdida para a linha de lado, até a garra de um lateral a salvar da saída, faze-la ganhar a linha de fundo. E este lateral, quando levanta a cabeça e olha o jogo, já traça o destino: passe na área, domínio e gol. Este é o trabalho do ponta, típica posição e invenção do futebol tupiniquim, atacar por onde ninguém espera, propor o inacreditável.

Num dia de chuva e estádio cheio. Queria que a seleção jogasse apenas um jogo sem camisa e descalça, para reviver e reacender a alegria e o êxtase do jeito brasileiro de jogar futebol.

Um comentário:

  1. "O futebol brasileiro é generoso e nunca revelou um gênio por vez. Somos ao menos uma dupla. Pelé e Garrincha, Tostão e Rivelino, Sócrates e Casagrande, Bebeto e Romário, Diego e Robinho, Lucas e Casemiro, Ganso e Neymar entre outras duplas. A maldição é exatamente essa, não existe adversário que possa apresentar uma dupla de zaga genial. Quando os holofotes caem sobre um craque, ainda sobra outro livre pra marcar."

    Vou discordar deste parágrafo apenas. Ronaldo foi o melhor do mundo e praticamente não teve um "dupla". Quando não tinha o cara livre la do seu lado, ele passava por cima dos que estavam no caminho e estufava a rede.

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